Local: Bairro Santa Lúcia, Belo Horizonte, MG.
Projeto: 1986
Área terreno: 384,00m2
Área: 150,00m2
Pequena casa em terreno urbano com topografia dificílima aclive de sete metros a partir do passeio e com programa bastante específico para o casal então formado por uma socióloga estudiosa de música e um publicitário-poeta; os dois filhos adolescentes, nem sempre permanentes, e uma menina. Sem falar nos visitantes-hóspedes, frequentes e regulares.
Em vista disso, a mesa é o local de longas conversas, bem regadas e substancialmente gastronômicas e é das conversas que se flerta com a televisão, logo abaixo, e com o quintal à esquerda, para os dias e noites quentes.
A garagem é um estacionamento meio maluco e apertado. Mas é por ali, por uma meia lua, que se chega à sala de estar e música, separadas por um aquário e com um púlpito externo, que faz as vezes de palanque para o declame de versos e poemas.
Um nível acima, temos a tv e os quartos dos meninos; o deles, com beliche para suas passagens; e o dela, com banheiro acoplado, não cartesiano, permitindo um pequeno e sadio voyerismo.
O quarto do casal, acessado por uma passarela/biblioteca, é grande e com aberturas diferenciadas.
A cobertura, com um pequeno deslocamento em relação às paredes do bloco principal, cria pés-direitos variados e luzes naturais dirigidas. Aberturas pequenas e convenientemente localizadas cromatizam a fachada esquerda.
Essas aberturas fazem alusão a uma pauta de música concretista de H. J. Koellreutter, paixão declarada da proprietária, “Acronon”. Acronon significa para conhecimento geral da platéia e em texto do Koellreutter “ser independente, livre de tempo medido, do tempo do relógio, de metrônomo e, portanto, em termos musicais, da métrica racional, da duração definida e determinada do compasso. Acronon é uma tentativa de realizar música que ocorra no âmbito de um tempo qualitativo (tempo como forma de percepção), pela ausência de referenciais fixos, pela relatividade das ocorrências musicais e pela trocabilidade em princípio dos signos musicais.
Tempo, em Acronon, não é um processo real, uma sucessão efetiva de sons que o interprete se limita a registrar, mas sim a vivência que resulta da relação de um determinado estado emocional com as diversas correntes musicais.
A forma da peça (ternária) é a do ten-chi-jin japonês, forma variável, assimétrica, de equilíbrio dinâmico, por assim dizer. A estrutura é serial, obedecendo aos princípios de uma estética relativista do impreciso (tendências substituem ocorrências definidas) e paradoxal (conceitos estéticos aparentemente contraditórios fundem-se), que delega aos intérpretes um alto grau de liberdade.”
Depois de relatar detalhes sobre a partitura da orquestra e do solista, da formação da orquestra, Koellreutter continua:
“A forma de Acronon consiste num monólogo do pianista, acompanhado ou ‘comentado’ por um tantam (1o movimento), pela orquestra (2o movimento) e por instrumentos solistas (3o movimento) sendo que planos de grande consistência sonora revezam com planos de textura, planos e linhas.
No segundo e terceiro movimentos, uma esfera transparente permite ao pianista distinguir os signos musicais através de sua espessura, e considerar, assim, no momento da seleção das unidades estruturais a serem tocadas por ele, o caracter complementar das mesmas. É que a diafaneidade da esfera torna presente ao solista o que, no pentagrama tradicional, era discurso antes e depois.
A partitura está planimetricamente estruturada o ‘plano’ da esfera, multidirecional e, praticamente ilimitado, substitui as ‘vozes; da partitura tradicional e compõe-se exclusivamente de pontos, linhas, campos e simultanóides (complexos sonoros cujos componentes não podem ser dispostos em terças sobrepostas). Ela é facilmente apreensível e transparente, quadridimensional, por assim dizer, se considerar a sucessão de sons como a primeira, a simultaneidade dos mesmos como a segunda e a convergência deles (tonalidades) como a terceira dimensão da estrutura musical.”
A transcrição, mesmo longa, me pareceu interessante ao ser comparada a alguns discursos arquitetônicos atuais, particularmente quando diz de uma estética relativista do impreciso e paradoxal, sugerindo liberdade de interpretação; de formas variáveis, assimétricas, de equilíbrio dinâmico; quando sugere o diáfano da esfera (transparência) modificando a forma de ver, o caminhar da partitura, eliminando o antes e depois, substituindo tudo isso pelo presente, pelo como é visto, entre outras considerações. Me parece uma dica de como podemos rever conceitos arquitetônicos, incorporando outros, novos, como ver através de, virtualidade espacial, quadridimensionalidade, visão multidirecional, a partir de um “conhecimento das diversas correntes relacionadas a um estado emocional”.
Acronon significa ser independente…